30 de março de 2006

atravesso contigo a imensidão incandescente da tarde
o itinerário oscilante dos pássaros em seu silvo branco

na torrente da sombra sentimos a infelicidade do silêncio
a pele encarcerada das pedras a resistência do tempo

transcorremos as searas até à desmesura da infância
recolhemos a eternidade uma colina para atar a paz
as palavras submersas na cintilação do esquecimento

no teu rosto o vago rumor da tristeza inicia uma flor
um canal pacífico para a delicadeza do firmamento
como se as asas do inverno perdessem a corrente
e houvesse uma hora para chamar de novo o amor

podemos purificar a errância da sede a cor do olhar
trazer uma sílaba de luz à coleante brevidade da vida

e só temos que nos abraçar deixar o coração morrer
para escutarmos a primeiríssima constelação da noite


um poema de "o afecto das palavras"

26 de março de 2006

alguma coisa arrefece dentro das minhas mãos
alguma coisa que ficou por dizer
ou um abraço por construir

e assim se tece a filigrana
do silêncio

22 de março de 2006

DEDICADO AOS VISITANTES DESTE VERSÁRIO

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade, para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com os teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Sophia de Mello Breyner Andresen

21 de março de 2006

apesar do frio nenhuma estrela pode ser mais bela
em dezembro o mar represando a última lua cheia


poema de "o tempo mais breve"
o rumor do dia traz-nos as flores pelas janelas da
casa

em breve todas as sombras escutarão o gosto da terra



poema de "o tempo mais breve"
para a borboleta o mundo não tem fim
só o tempo lhe pode arrancar uma asa

17 de março de 2006

título sem título


união
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une-me ao teu sonho vertical
prende-me às palavras
com que respiras a altura do dia

deixa-me ficar rente às tuas asas
enquanto esperas por mim

14 de março de 2006

sonho com chuva


sonho com chuva
Originally uploaded by danielsg.
a noite começa com o rasto do dia
preso ao cansaço
que ainda não chegou a casa

(chove lentamente como as primeiras
formas do sonho)

mais adiante a escuridão será confortável
sob os lençóis invioláveis do descanso

8 de março de 2006

chaminé como boca


chaminé
Originally uploaded by danielsg.
a chaminé como uma boca
entre as faias

respira a manhã
para dentro das nossas primeiríssimas
palavras

6 de março de 2006

ao anoitecer
vê-se o nome da ilha

na luz que
procura o outro lado do horizonte

na fragilidade
do tempo

que escorre com
o silêncio do nosso caminho

 
nesse instante
em que o mundo

parece somente o
lugar donde nos vemos

sem sombra que
nos prolongue

nem voz que nos
ecoe

 
ao anoitecer
vê-se o nome da ilha

é esse o
mistério que deixamos para mais tarde dissolver

não um nome como
uma concreta pedra

pesando o seu
significado

mas uma flor a
quem não importa a palavra

por ter na sua
ideia a mais alta cor do mundo

por conter a
doçura intacta da pureza

 
ao anoitecer
vê-se o nome da ilha

e é um contorno
breve de uma ternura que nos espera

tão perto tão
acessível tão formosa

como a manhã que
se seguirá

 
para nos lembrar
que o nosso corpo pesa

porque deixamos a
tristeza ocupar o seu espaço

e prolongamos
dentro de nós o ruído do cansaço

 
ao anoitecer vê-se o nome da ilha
reparemos
está lá como um coração
pulsando o primeiro beijo
é uma música branca
uma música caiada de água
 
o silêncio que se ouve
através das asas do poema
 
é uma música dolente
uma música pesada de chuva
 
a tristeza que se agarra
ao rosto da mãe cansada
o último voo das aves
leva a mão do poeta
 
o último voo das aves
há-de parecer azul
no fundo triste da noite
 
o último voo das aves
é o caminho que arde
quando a vida nos tira
o último sopro da morte

1 de março de 2006

neve na peneda


neve na peneda
Originally uploaded by danielsg.
ao longe a neve
ao perto esse frio
quase transparente

e assim se faz
uma viagem à infância
soletrada em cada passo
deste dia