27 de março de 2010





a primavera hoje deu de si e esvaziou o seu coração de chuva
sobre mim

estou agora como uma flor de lótus do avesso
mergulhada na irrespiração do silêncio

estou agora como uma árvore sem nome
sem sombra

à espera do verão



26 de março de 2010





talvez nunca tenha amado
talvez nunca tenha saído deste círculo
onde o amor é uma fotografia boiando numa fonte

talvez nunca tenhas sido mais que uma canção
daquelas que nos repartem o coração
com o lado mais inclinado do silêncio

talvez tenha perdido tempo à espera de saber
se o amor é aquilo que nos prende à vida
e se a morte é apenas outra inspiração

talvez nunca tenha amado
talvez tenha esquecido que amar
é uma sorte que apenas chama os loucos

e que os loucos lembram tão mal
que são felizes

23 de março de 2010

DUAS SEQUÊNCIAS DEPOIS DE "MARY & MAX"





há sempre alguém que tem uma vida miserável
muito mais que a tua
e mesmo que morras há sempre alguém que morre ainda mais que tu

há sempre alguém que despercebe o mundo mais do que alguma vez
despercebeste

há sempre alguém que tem mais dúvidas que tu e nessas dúvidas
consegue sonhar mais do que alguma vez sonhaste

há sempre alguém do outro lado do mundo
a ver as mesmas coisas que tu

e nesse lado do mundo fica a pensar que o mundo
não passa daquela porta

há sempre alguém muito mais pequeno que tu
tão pequeno que consegue ser ainda mais nada que tu

por isso faz a única coisa que te pode salvar
vá lá

come um chocolate
UM DIA NA PRAIA



um dia na praia havemos de contar as vezes
que fomos felizes

teremos o mar que for preciso
para compor o que nos faltou

e o tempo de uma tarde que finge ser eterna
para nos anteciparmos à morte
e desenharmos o resto da nossa vida

18 de março de 2010

sei que não vale a pena dizer nada
o nada está feito do que é

PENSAMENTO COM AGATHA BELAYA (para a Sandra)



a nossa casa podia ser do tamanho das vezes que a quisemos grande
uma enorme cúpula de água sobre o nosso amor

ou apenas uma janela aberta

e uma cadeira para escutarmos a primavera lá fora
e ronronarmos com o perfume de não haver mais nada

15 de março de 2010





VOU DIZER-TE ESTE QUADRO DE CHAGALL



primeiro: eu estou no quadro e sou tudo quanto vês
a aparente felicidade o amor umbilical a minha juventude
exposta como uma buganvília que ganha asas de um dos lados da casa

segundo: tu também estás no quadro mas não és a óbvia mulher que flutua
estás no meu coração onde te sou fiel
e o teu nome é o poema contínuo que não me deixa morrer

terceiro: uma cidade ou uma aldeia que importa agora
se estamos a meio do verão
com tempo para ver crescer a ilusão de que somos eternos





14 de março de 2010




há muito que eu não sou um corpo
sou uma ilha

e no centro de mim tenho um mar que se afunda
e me alisa o rosto

aos poucos vou encolhendo como um vestido
que se usou na comunhão solene

e não falta muito deixará de servir
e não falta muito será apenas uma recordação

muito antiga

11 de março de 2010


imagem de piinnkkii



o que faz de mim um bom ou um mau poeta?
o grande poeta dizia que como ele havia cem mil génios se concebendo em sonhos
e eu nem isso

os meus sonhos são mais simples:
tenho um pomar libertado ainda ontem no meu quintal
fruta que há-de dar sombra e água na boca do chão

contudo sou poeta
dizem-me que ando distraído e perdoam-me por isso
e por causa disso também me sorriem como se eu fosse anormal
acenando às nuvens ou às flores ou a outra coisa
que prenda o olhar dos distraídos

bom ou mau? quem diz afinal?
o próprio poema quando se perfila contra o silêncio
o blogue do crítico a selecção do jornal
ou o telefonema do editor a dizer que a dívida está paga?

8 de março de 2010




basta pensar no teu nome no teu nome rodeado pelo teu rosto
e as tuas mãos como água na minha boca
calando para sempre a minha tristeza

basta pensar no teu lilás profundo na noite maravilhosa
eterna como cada vestido que tiras do teu coração

basta pensar na música (uma estação de metro no deserto da noite
e uma cidade vazia) e a nossa dança tão ansiosa por chegar a casa

basta pensar no tempo que foi nosso e na nossa vida
passada num instante de quase nada
basta ter havido o teu amor

(bastou isso)

5 de março de 2010




Mais uma vez tive o prazer de fazer parte de um programa da RTP Açores e desta vez foi no formato do programa PROVA DAS NOVE. O responsável pelo convite foi o jornalista e escritor Rui Goulart: a ele o meu agradecimento e louvor pela qualidade do programa. Confesso que estava muito ansioso (leia-se nervoso) pois aquilo era em directo e os temas algo distantes daquilo que motiva o poeta e, afinal de contas, terá sido o poeta a ser convidado. Fica aqui um cheirinho.